domingo, 21 de março de 2010

Olhares de um ilustrador de conto de fadas

Gustave Doré, 1861
Na ilustração, os traços de Gustave Doré (1832 – 1883), ilustrador de contos de fadas, promovem uma ilustração com preocupação visual e movimento visivelmente expressivo. O livro tem altura próxima das personagens, o que sugere que essas criaturas pertencem a ele. Caso tomássemos esse livro para leitura, poderíamos supor que estas personagens saíram da história. Elas, em sua maioria, estão direcionadas para frente, o Gato de Botas aponta para uma direção e, utilizando o livro como guia, elas seguem o percurso.
Na ilustração, o peso das sombras no limite entre as personagens e o livro, representa fendas e dobras . Tomamos como fendas e dobras, elementos que funcionam como tangentes da linguagem. A primeira representa espaços vazios a serem preenchidos pelo leitor, a segunda, alimenta a imaginação do leitor, que sugere o que está velado. Nesse caso, as margens poderiam ser o que o desenho pretende representar (a figura) e o próprio ato de desenhar (de produzir a representação). Um ponto de tensão entre a forma e o gesto. Na figura, as fendas entre cada personagem, denotam uma densidade da obra, que provocam um prazer. Os pontos de maior prazer da ilustração estão nas bordas, nas junções de linhas e sombras e nas dobras formais.
Rolland Barthes, pelo viés da recepção, descreveu o prazer textual aproximando-o do prazer sensual, erótico. Essa descrição elucida o sentimento de descobrimento, proporcionado pela leitura.
O lugar mais erótico do corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não há ‘zonas erógenas’ (expressão, aliás, bastante importuna); é a intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento. (BARTHES, 2002 : 15 e 16)
Podemos fazer uma analogia entre este momento de leitura e o instante em que o ser amado não é mais e continua sendo, e se liga ao seu amor numa mistura de perda e prazer, que provocará a dor jubilosa na descoberta, como na “pequena morte” para os franceses, quando o conhecimento passa a transformar a vida.
(...) Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce. (GALEANO, 2001: 95)
Essa ruptura que extravasa os sentidos está na jouissance, que para Barthes denomina como gozo, posse, usufruto, fruição. É o momento de “brio do texto”: “lá onde precisamente ele excede a procura, ultrapassa a tagarelice e através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos adjetivos – que são essas portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário penetram em grandes ondas”. (BARTHES, 2002 : 20)
Entre as personagens convive o orgânico, o entrelaçar de linhas e curvas, o irregular da força do lápis no papel. Em contrapartida, há uma harmonia nas folhas do livro, que tombam com maestria, indicadas por linhas uniformes que, quase em silêncio, fazem abrir o livro, proporcionando uma nova fenda, instigando a curiosidade do leitor a percorrer esse espaço e participar do livro.
Esse processo de descobrimento ocorre no ato da leitura, em uma ida e vinda em que o texto se confunde com a experiência prévia do leitor. Neste sentido, o leitor “ajuda o texto a funcionar”, a intenção do autor e a do leitor se sobrepõe de forma a ocasionar uma cooperação textual. (ECO, 2002b : 37) Um mesmo livro, lido por leitores diferentes, transforma-se em textos diferentes, ou seja, a leitura pode ser vista como uma experiência única, proporcionando conhecimentos e sensações singulares.
Nesse caso, assim como a narrativa verbal, uma ilustração também narra, e ela pode se tornar uma linguagem complementar, suplementar ou paralela ao texto escrito.

2 comentários:

celeal disse...

Renata,
Lindo teu texto que demarca a tênue linha entra: o erótico e o sensual, o fetiche e a fantasia, a sombra e a luz, o livro e o leitor, a ilustração e o ilustrador.
Belo texto, parabéns!
bjs

Renata Vilanova disse...

Carlos Eduardo, obrigada.
Sim, é verdade, tênues demarcações que as leituras nos provocam, por vezes apenas imaginárias.
bjs